Inversão

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Saber que o mundo hoje é imediatista não é novidade. A tecnologia tem pressa e evolui; a humanidade tem pressa e regride. O diálogo quase inexiste, mesmo com tantos meios de comunicação.

Resulta disso a carência, mesmo que despercebida, de senso crítico. As conversas de outrora eram debates. Atualmente só há discussões sobre qual rede social é melhor. Rede? Não: teia. A paciência de receber um bilhete ou uma carta e pensar em que escrever se extinguiu e deu lugar aos meios que temos hoje: rápidos, fáceis e desprovidos de reflexão.

Ocorre, dessa forma, a solidão, e não a solitude. Se havia poetas que se retiravam para pensar, tem-se hoje pessoas solitárias. A interação entre as mesmas é difícil e só se salva quem se esforça para sair do senso comum.

Essa é a sociedade de hoje: forte em tecnologia, fraca de mente (demente?). É preciso sair do marasmo, é preciso retomar os costumes “antiquados”. Mas já dizia Eça de Queirós: “Eis a Civilização”.

Mariana

Preocupe-se em sorrir

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Heloísa tem o cabelo curto, usa óculos grandes e vai para a faculdade usando galochas. Sabe como é, sempre chove em São Paulo. Ela chega com o cardigã meio molhado, sacode a água da sua maleta cheia de livros e um estojo e sobe as escadas para a primeira aula.

Como sempre, as meninas de Moda as olham dos pés à cabeça. Principalmente dos pés. Galochas amarelas? Heloísa finge que não vê e nem ouve os sussurros incessantes. Sorridente, continua andando. É a única da faculdade que fala “boa noite” ao faxineiro, que esboça o único sorriso do dia exclusivamente para ela.

Andando pelo corredor gelado da faculdade, Heloísa percebeu que a maioria dos alunos usava fones de ouvido e não conversava com ninguém. Claro que ela mesma gostava de música, mas preferia cantar com seus amigos da sua cidade natal. Tinha um MP3, mas usava no seu quarto antes de dormir, só pra relaxar um pouco. E de dia, enquanto enfrentava o trânsito até o estágio na biblioteca, tentava ouvir se, no meio de tantos carros, existia algum passarinho. E procurava flores, também, onde só havia concreto. De vez em quando, ela achava.

Faltavam alguns minutos para a aula começar, então Heloísa sentou-se na carteira de sempre: a segunda da terceira fileira. Tirou da sua maleta seu livro favorito e começou a ler, sentindo que as palavras a protegiam a cada frase lida. Aquele livro era o seu favorito de sempre, tipo aquele sapato que você quer usar sempre e de qualquer jeito, que já foi com você para todos os cantos. O livro estava um pouquinho amassado na capa, mas Heloísa sempre cuidava dele com muito carinho.

Seus colegas de sala foram entrando. Alguns a viam e diziam “boa noite” (alguns, tipo, quatro em uma sala de quarenta), alguns passavam reto e alguns olhavam para o livro dela e riam.

– De novo esse livro, Menina da Galocha? Cresce logo! Vai ler alguma coisa diferente, alguma coisa mais culta!

Não é que Heloísa não lia outros livros. Na verdade, ela tinha uma infinidade deles espalhados pelo seu apartamento. Mas ela gostava mais daquele. Gostava tanto que queria lê-lo todo dia.

 – Você já leu esse livro? – Heloísa sorriu e perguntou, ignorando a frase dita – É ótimo, acho que você ia adorar.

– Esse seu livro babaca? Qual é, nunca perdi meu tempo nem lendo a sinopse! O dia que você ler um dos que leio, merecerá algum respeito.

Enquanto a pessoa ia embora rindo, Heloísa se sentiu confusa. Para ela, ler era como trocar figurinhas: um indica um livro para o outro e troca ideias. Mas não se faz troca com uma só pessoa. Preferiu se calar. Logo o professor entrou na sala, cumprimentou a menina e passou a matéria na lousa. Mais tarde, naquela quarta feira, metade da faculdade seguiu para a balada que tinha por ali, mas Heloísa preferiu ir para casa, dormir cedo para ir de bicicleta ao trabalho no dia seguinte. Quem sabe não ouvia um pássaro cantar…

É certo que o tempo voa. Heloísa terminou sua faculdade de Biblioteconomia na Inglaterra, ficou morando por lá em um apartamento que dividia com o noivo inglês e com um gato. Enquanto isso, outros ficaram para trás, mais preocupados em cuidar da vida dos outros do que sorrir.

Mariana

(Contra)dizendo

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Dei rosas a mim mesma,

Mas eu prefiro margaridas.

Saí de casa à luz do dia,

Mesmo gostando mais da noite.

Amei a mim mesma,

Não fui correspondida.

Deixei meu cabelo crescer,

Mas na verdade queria pintá-lo de azul

(quem sabe umas mexas roxas, também).

Peguei um ônibus,

Adoro andar a pé.

Falei baixinho,

Eu sempre grito para o mundo.

Assisti a um filme de ação,

Gosto mais de romance histórico.

Tentei só comer salada,

Chega! eu quero chocolate.

Vivi no mundo,

Voltei para a minha casa.

Fiz um poema para me encontrar,

Me encontrar nesse mundo,

Mundo tão confuso,

Tão confuso quanto eu.

Sem limites

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Você, que um dia já foi criança, sabe que para que uma brincadeira começasse, bastava pouca coisa. Para mim, era só falar “faz de conta” e pronto: eu era irmã da minha melhor amiga, eu morava em um castelo, eu era uma sereia. Pena que a gente cresce, né?

Então a gente vai crescendo e percebendo que o mundo coloca limites em tudo: no jeito que você anda, no jeito que você fala e pensa. Aí vem aquela frase de efeito: “o céu é o limite”. É clichê, mas essa frase não nasceu à toa.

Estive pensando em como as pessoas se rotulam. Eu procuro ao máximo não fazer isso, apesar de falhar algumas vezes. Eu vejo rótulos todo dia, e não estou falando da Coca-Cola, da Apple ou qualquer outra marca. Vejo gente que coloca na cabeça que é uma coisa, será sempre a mesma coisa e pronto: rótulo. Pode até ser que ele mude um pouquinho de aparência, mas a essência do negócio é a mesma. Cadê aquela criança que queria ser bombeiro, que queria ser piloto de avião e bailaria? Por que agora só vejo engenheiros e médicos? E não é só profissão, não!

Vejo pessoas que não variam nada. Sabe aquela coisa de rotina? Vê sempre o mesmo tipo de filme, come sempre o mesmo tipo de comida, lê sempre o mesmo tipo de livro! Tá aí uma coisa que me deixa inconformada. Como pode uma pessoa não ler nada diferente ao menos uma vez na vida? Menino só lê aventura, menina só lê romance, adulto só lê auto-ajuda. Cadê o repertório?, cadê a cultura? Sinônimo de brasileiro é mistura! Bom, pelo menos era… Agora só vejo listras ou brancas, ou pretas.

Além de não somar nada à vida, a pessoa se limita tanto que vai esquecendo que um dia sonhou. Eu guardo meus sonhos antigos comigo e acumulo os novos que chegam. Com sete ou oito anos eu já queria ser escritora! Não acredita? Pergunta para quem me conhece há mais tempo. Os sonhos novos vêm chegando não para excluir os anteriores, mas para sonhar.

Sabe qual conclusão eu tiro? Limite tira a personalidade. Cada vez mais e mais eu vejo listras brancas e pretas. Cada vez menos eu ouço falar que o céu é o limite.

Mariana

Opressão

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Julieta vivia em um orfanato. Tinha dez anos e sabia que um dia ia sair dali, para finalmente ver outras cores além das paredes emboloradas. Tinha uma ou duas amiguinhas, no máximo. Estava sempre com a mesma expressão e tinha certo medo de sorrir ou de chorar: fazia isso escondida, longe dos outros.

Era obrigada a sorrir apenas quando um casal ia visitar o orfanato em busca de um filho. A Dona Lúcia fazia todas as crianças tomarem banho antes da visita e deixava cada uma em seu respectivo quarto. Assim os futuros pais entravam de quarto em quarto.

Julieta penteava o cabelo sem graça e comprido. Sentava na cama velha e tentava, ao máximo, sorrir. Sabia muito bem o que acontecia nos dias de visita: rejeição e olhares de nojo.

“Essa menina tem distúrbios”, Dona Lúcia dizia para o casal quando entravam no quarto. “Terei pena dos pais dela”.

Julieta chorava um pouquinho quando o casal saía, transtornado.

Mas uma coisa Julieta fazia muito bem: tocava flauta. Um dia, caminhando no orfanato, viu o objeto prateado brilhando embaixo do sofá. Pegou para si e, rapidamente, aprendeu a tocar. Suas duas amiguinhas adoravam quando ela fazia música, e Dona Lúcia até esboçava admiração no rosto carrancudo. E quando a menina estava inspirada a tocar, Dona Lúcia entrava com o casal em seu quarto e dizia:

– Veja como toca bem, a pequena menina! Um prodígio!

Quando a menina, porém, errava uma nota, logo a velha fazia cara feia e tirava o casal do quarto. Julieta sabia que teria uma sessão de palmatória mais tarde.

Por isso Julieta evitava mostrar emoções ou sair da linha. Evitava falar o que sentia também, para não correr o risco de chorar. Talvez fosse mesmo um monstro, bicho ruim que ninguém sabia domar. Era difícil para a criança entender a razão pela qual os adultos a odiavam. O resultado dessa tal opressão foi esse: quietude. Sabia que ninguém entenderia uma palavra do que ela diria em contestação. Julieta evitava mostrar emoções, mas quando fazia música ela sorria.  Sorria quando pegava seu urso velho de pelúcia e recebia um pouco de carinho. Às vezes ria e chorava junto, indecisa e emocionada. Não sabia muito bem como se controlar.

Ficou anos e anos nesse ciclo. Visita, rejeição, choro. Flauta, carinho do urso, sorriso. Suas amigas nem estavam mais no orfanato e as novas meninas que entravam nem se atreviam a chegar perto, de tanto Dona Lúcia dizer que a menina não valia o chão que pisava.

Mas chegou o tão esperado dia. Julieta fez 18 anos. Não teve bolo, não teve presentes, não teve um aperto de mão. Mas todos no orfanato viam que ela sorria de orelha a orelha, com a maletinha de roupas antigas e pequenas na mão. Na outra, seu urso e a flauta.

Desfilou pelo orfanato, feliz da vida. Isso mesmo, feliz. Pela primeira vez na vida. Dona Lúcia balbuciou alguma coisa, como se quisesse dizer que sentiria saudade. Julieta pouco se importou: pegou seus documentos de identidade, enfiou na maletinha e saiu porta afora.

Ela sempre soube que ia sair dali, para finalmente ver outras cores além das paredes emboloradas. Viu o céu azul e sorriu, sem ninguém para obrigá-la a nada.

Mariana